sábado, novembro 19, 2016

UMA VOZ

Primeiro foste a promessa de uma voz. Serena. Melodiosa. Sem te conhecer e sem ti, assim me foste descrita. Como um som. Omitindo — se calhar porque não sabiam — que a tua voz é (muito) mais do que isso. É calor. É sorriso. A tua voz tem um sorriso que a diz. Que a precede. Que a anuncia e que a suporta.

Assim nascemos um para o outro. Pequeninos. Em voz. Sorrisos e calor.

Mas o calor da tua voz provém (hoje sei-o) de um coração largo. De dádiva. Em serenidade e em gosto. E por isso, as mesmas palavras ditas por ti, nunca são aborrecidamente iguais. Antes afagos. Brisas primaveris. Prazeres renovados. E com esta (conveniente) desculpa de co-existência pelas palavras, fomos crescendo. Um para o outro. Um com o outro. Em constantes propostas mudas de entendimento. Daquilo que o outro é.

Com o tempo, tornaste-te um pólo afastado de mim. Alguém que está na extremidade da minha voz. Na ponta dos meus dedos. Mas sempre dentro do meu ser. No centro das minhas palavras. Em sorriso.

Hoje, tenho-te em amizade. Em consciência de vida. Lado rico da humanidade.
E hoje, contigo, mesmo que por vezes (muitas vezes, demasiadas vezes) sem voz, eu existo.
E escrevo. Para te dizer. Mesmo sabendo que o calor não se escreve. Só sorri. Sempre.

sábado, novembro 12, 2016

ENCONTRA-ME

Procura-me. (e por favor) Encontra-me. Estou naquele lugar que toda a gente conhece, mas ninguém sabe onde fica. Tu sabes onde eu estou. Eu não. Habita os meus dias. Aqueles. Que acontecem totalmente em mim. Apenas por dentro. Em garfos. Sob os cascos do tropel de mil cavalos.

Olha bem para mim.

Não sejas como o espelho que se enfastia. As suas imagens têm travo a carne seca. A ideias gastas. Desilusão de vida. Língua que mordo. Portas que batem sem se abrir. Sentimentos espalhados pela rua, que a chuva leva.

Se soubesses…

Não são os dias que são sombrios. Não são os sons que são tristes. Não são as flores que murcham nem as palavras que me prendem. SOU EU! Eu é que existo a ferros. Sou todo espinhos. Peso. Noite. Em tempestade(s). Gastas.

Hoje quero-te.

Hoje quero chamar-te meu. Mas eu sei que nunca serás meu. Serás apenas tu, de passagem em mim. E quando a tua estação terminar, ficarei novamente e uma vez mais apenas eu. Vida só. Sem rede. Ser pasmado. Mas não incrédulo. Porque a minha existência não é de ilusão. É terra. É pedra. Dureza de existir. Dor de acontecer.

Procura-me. (e por favor) Encontra-me. Mas não me fales. Dá-te com um sorriso apenas.
Só assim será mais fácil. Quando o mar apagar o teu nome, que eternizarei na areia molhada.

sábado, novembro 05, 2016

ÚLTIMO BEIJO

Rente aos teus olhos acordei com um aroma de pele. Mudo, o tempo, levou de si toda a significância. Eram mares que nos continham em margens e no entanto, era em lago que existíamos. Tu, numa delicadeza de flauta. Eu, em força de tambor. Mas quando juntos, éramos sempre melodia de piano, feita orquestra de um só músico. Sem maestro. Sem regência. Ao ritmo apenas das nossas vontades.

Partimos cedo ao encontro do tempo. Do nosso tempo. Aquele que imagináramos e quiséramos para nós. Mas que não o soubemos fazer nosso. Responsabilidades. Dizias tu. Vida. Respondia-te eu. E no nosso desconhecimento, não sabíamos que um conspirava contra o outro. Sei que não nos permitimos destruir os nossos castelos. Mas eles ficaram vazios. E a tua inexistência nos espaços deles, tornou-os frios. Agrestes. Antípodas do que projectáramos. Alheios.

Foi um ar de surpresa que fizeste, quando na divisão final de memórias te disse que para mim, apenas queria um último beijo teu. Não quis deitar fora tudo o resto. Isso nunca se perderá. Apenas quis algo mais. Não um ponto final. Mas um final maior. Em beijo. E foi quando ainda surpreendida acedeste, que rente aos teus olhos acordei com um aroma de pele. Da tua pele. Mas sabia-me atrasado. Em vida. E que não era manhã, com ela toda pela frente, mas antes noite. A nossa noite. Em hora de despedida.

Foi rente aos teus olhos que com o aroma da tua pele acordei. Mas já era tarde.
No nosso diário nada mais se escreverá. Mas ele está todo preenchido.
E levo-o comigo. Em sentires.